domingo, 27 de abril de 2008

Chão

Em meio ao cheiro intoxicante de sinteco, às paredes vestindo um novo branco e vermelho, ao cheiro de água-rás, aos móveis fora de lugar que fazem parecer que acabamos de nos mudar para cá, em meio a tudo isso percebo que meu chão é frágil, delicado, e que um pufe fora de lugar me tira da minha órbita. Não sou só eu, imagino, que vive nessa tentativa de dar ordem e classe ao caos, quando o mais leve dos tremores me faz esquecer meu nome, me faz repensar meu dia, me faz lembrar "tô viva".

Agora uma ordem nova vem serpenteando por essa casa que é tão tão minha, mais ainda, tão parte de mim. E a noda ordem vai entrando em mm, para depois ir para fora, raio esférico, projetando, será que será, algo muda mesmo? Algo muda na ordem?

A real mesmo é que não tem porra de ordem nenhuma.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O que que eu tô fazendo aqui? Tô na maré. Minha perna com hematoma -pulo muito em casa, caí no chão rolando, me fudi toda, chorei de dor, temi ser grave mas foi uma emoção- aperto, ai, adoro dor de hematoma, e eu de bota, poça de chuva na rua, um monte de escada, tudo no Rio tem escada, essa pré-adolescência revolt que eu já enterrei, eu tô rebolando demais, eu tô bêbada. Tropeço na escada, caio de joelho, mulher adora ficar de joelho, mas não teve reza não, foi só tropeço. Levanto, vou pegar outra cerveja, converso com a beesha da fila: ele vai ser escritor e vai me chamar pra sua noite de autógrafos: Qual seu nome? Sérgio. E você? Rachel, prazer.

Não tem ônibus, tomo táxi, detesto ter que gastar dinheiro em táxi, faço pipoca matinal, durmo, protelo, protelo, protelo terminar essa porra desse trabalho, não suporto mais minha faculdade.

O que que tô fazendo aqui? Só na maré. Eu Não consigo parar de apertar esse hematoma. Eu sou viva, minha carne é viva, capaz de produzir hemorragia interna, rapá. Viva e jovem, graças a Deus. É bom agradecer agora enquanto é tempo.

Não saiam de bota se estiverem com pé fudido.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Traumas de Infância (I)

A mãe nunca deixa a pequenina ter o cabelo grande. Não, não, não! Tá muito grande isso aqui! Você ta parecendo uma maluca com esse cabelo desgrenhado. Durante seis anos seguidos a mãe olhou torto para o cabelo grande. No natal ganhou o castelo de Grayskull. No aniversário uma bola de futebol. Na páscoa ganhou ovo de páscoa, não que isso faça muita diferença, mas era um ovo de chocolate branco e todos sabem como ela gosta de chocolate branco. Comeu ele inteiro e lambuzou a boca e as mãos. Comeu todo ele como a pequena de Alvaro de Campos comeria. E não houve mais metafísica no mundo que o desembrulhar do papel laminado, o barulho do papel laminado saindo de cima do ovo, e o chocolate na boca da menina feliz. Na escola se tinha peça ela era o macaco, era o arbusto,o burro, nunca a princesa. A professora decidiu então que todas as meninas iriam ser flores. Já os meninos seriam animais. Sorteou: Bernardo vai ser um Leão. Marcela vai ser uma margarida. Igor um tigre. Camila uma rosa. Daniel um touro. Magdalena vai ser uma Maria-sem-vergonha.

- Mentira, não existe essa flor. Não existe Maria-sem-vergonha.
- Existe sim, ali no jardim do pátio tem um monte.
- Mentira, mentira, eu não quero ser Maria-sem-vergonha

E correu para debaixo de uma mesa e ficou chorando. Consolo nessas horas não ajuda. Nunca ajudou. A mãe a deixava parecendo com um menino. Na escola era arteira e recebia bronca dos professores. O castelo de Grayskull tinha um he-man, e ela fingia que era a casa da barbie. O he-man era a barbie. A bola de futebol era a lua. Magdalena chorava sozinha pois queria ser uma princesa como as outras meninas.

Completados 7 anos a Mãe decidiu fazer uma grande festa. O pai pagaria é claro. Ficou em casa imaginando como seria, o vestido, a dança, tudo mágico. Visitou o avô e ele era um homem muito caprichoso, tinha me prometido uma coroa de princesa. Ela teria pedras preciosas e seria toda de prata, só de imaginar era um sonho. Cheguei na casa do vô e ele estava empenhado no quarto. Perguntei o que fazia e ele escondeu. Ainda não estava pronta, mas pelo visto ficaria linda. Tentei olhar escondido para ver como ficava. Calma menina, ainda falta um bocado, deixa eu terminar, não olha antes que se não dá azar. Pensei que se a coroa fosse tão maravilhosa quanto imaginava, o vestido seria, e sorria sozinha e pulava pela casa. Nunca havia sido tão feliz. Vou ser uma princesa. Vou ser a princesa mais linda do mundo. E pediu para a irmã fazer uma trança mas ela não conseguiu, o cabelo era curto demais. E sorriu que não teria problema, nada poderia ser um problema para ela naquele dia. Naquela noite.

Era uma sexta e chegando em casa correu para o quarto procurando o vestido. Manhêê, cadê meu vestido de princesa. Cadê o meu vestido?

Na cama uma camisa listrada e uma bermuda rasgada. Manhêêê, cadê o meu vestido? Cadê o meu vestido?

A mãe no quarto,tentando compreender o que a filha falava. Manhêê cadê meu vestido?

- Que vestido querida?
- Meu vestido de princesa!
- Do que você está falando, que vestido de princesa?
- Pra minha festa hoje.
- Querida.
- Cadê meu vestido mãe...?
- Não tem vestido, mas, olha só, tem uma roupa de pirata super legal que a mamãe comprou pra você!

Era possível ver a lagrima nascendo nos olhos de Magdalena. Um berro. Não quero ser pirata, eu quero ser princesa. Corre e se tranca no banheiro, chorando. Continua no banheiro. Chorando. Magdalena é a pessoa mais triste do mundo. Quer morrer.

- É mentira, né, mãe? O vô tava fazendo uma coroa de princesa pra mim, eu vou de princesa, não vou?
- Não, eu não comprei vestido . Você sempre adorou piratas, é muito legal sua fantasia vem olhar querida!

Chora

- Abre essa porta vai menina, não fica assim, a gente dá um jeito.
- Não quero ir de pirata, não quero ir de pirata.
- Você pode ir com a roupa de pirata e a coroa de princesa.
- Não quero, não quero!

Chora.

Algumas horas depois aceita, vai com a cara vermelha e emburrada, uma camisa listrada e uma calça rasgada, um tapa-olho preto e a coroa mais linda que já fizeram em todo o universo.

Danilo pergunta:
Cê tá fantasiada de quê Madá?

Chora.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

O Trident entrou em mim. Filhos da puta. Sabem me ler, sabem me ler direitinho. They got me pegged. Eu queria fazer publicidade quando era mais nova, mas a minha moral cristã me impediu. "Sei lá, acho que daqui a uns dez anos eu vou me sentir mal em ganhar a vida convencendo os outros de que só vão ser felizes com tal xampu". Adorava repetir isso. Mas como é sedutor: trocadilhos do Hortifruti, logomarca da Unilever no canto direito da tela, transformar qualquer coisa em portador de apelo sexual, cotonete sexy, creme sexy, sangue menstrual azul, enfim. Tudo bacana. E agora o Trident me venceu. No meu estômago, em cheio, foi um fuzil. A mulher deu um tapa na bunda na frente dos pais embasbacados e eu fui correndo comprar um Trident. Ok, não exatamente correndo, mas no dia seguinte, antes de comprar água de côco (que é hidratante e bom para a pele) a caminho da aula. Comprei, comprei. Eles mandaram, eu fui e comprei. Me livrei do blá blá blá. Satisfeitos? Me têm na mão agora, seus malditos gênios, senhores do tempo e da minha conta do Bradesco. Que fizeram de mim: agora eu sou um retalho de individualidade libertadora a base de TRIDENT! TRIDENT É ALEGRIA!!!!

Como soou desesperada essa minha verborragia. Lendo isso alguém pode crer que sou um turbilhão de conflito interno, quando na verdade meu conflito interno é tipo assim, em nível subatômico; dando uma afastada o sistema continua em perfeita ordem em sua totalidade, sacou? O Trident não impede - e talve até contribua com - a minha felicidade.

Se alguém for agora na esquina comprar Trident, não me responsabilizo. Eu hein, vai tomar no cú, a vida é sua e não minha.