sábado, 24 de maio de 2008

O calendário

­ - Já deu alô para os seus padrinhos?
­­­Sua voz estava mais fraca do que nunca. Sempre penso a mesma coisa ao entrar em sua pequena quitinete com panos velhos e retratos carcomidos: sua voz fica cada vez mais fraca. E o rosto, mais vago. O tempo come a expressão? Não sei, mas come a compreensão. Ela não entende mais a missa metade.
Eu não quero envelhecer. Amo minha juventude, como se fosse um mérito meu. A velhice é uma merda, e eu prefiro a minha ignorância jovem. Morrer jovem ou viver metade da sua vida velho?
Ela não entende o que digo e solta uma gargalhada nervosa, um reflexo fantasmagórico do seu antigo riso de resignação. As manchas na pele a envergonham. Ninguém se sente por dentro velho como é por fora, sempre puc gente de idade falando isso. E temo não desejar estar no corpo que tenho. Não consigo ver vantagens na velhice, e quero ver, porque pior do que as traças o tempo na carne e a marca de navalha na cara, bisturi desregulado, um grito gutural: “Ainda quero dar! Ainda quero dar!”. Isso sim dá pena.
- Como assim alô, Tivó, pelo telefone?
Já sabia o que ela ia dizer. A coisa vinha crescendo nos últimos meses. Tinha começado como uma piada inocente, mas em algum ponto, as imagens se fundiram em sua mente cansada e ela já não sabe ler dimensões. Algo do gênero.
- Não, na sala.
Antes ela ainda vinha se corrigindo. “Ai, que bobagem minha, falar com a foto”. Mas agora nem isso, mais. Correções a essa interpretação da realidade, por assim dizer, são sutilmente descartadas por um balançar leve da cabeça, com olhos baixos. Não escolhia de acordo com o mês qual página do calendário seria exibida na parede, e sim de acordo com qual foto de família mais lhe apetecesse no dia. Naquele dia era a do Tio Beto e da Tia Ana.
- Na saída dê um tchau pros seus padrinhos. Não custa né.
- Ah, Tivó, dar tchau para foto...
- Só um tchau!
Na parede as imagens estáticas, que aos seus olhos vem se fundindo ao mundo turvo dos dias lentos da velhice. A velhice é lentidão e peso, e o que é dos dias sem a leveza, a dispersão, o suco de caju ralo? Dizem que há certas vantagens, mas eu não enxergo. Pode ser também cegueira.
- Essa foto é a de abril, Tivó. Estamos em maio – eu digo, trocando a foto. Ela se remexe nervosa, na cadeira. Ofendida. Como se tivesse expulsado seu filho de casa.
- O telefone tocou outro dia e era ele. Eu perguntei, ô Beto, como você ta me ligando daí se eu to te vendo aqui na sala?
Eu estou me preparando para perdê-la, eu devia já estar preparado. Ninguém é eterno. Na verdade, até acredito que todos sejam, mas não na forma-corpo, consciência-história que lhes atribuímos. Essa fotografia não é eterna, se perde, se confunde, se esvai, fervendo e fundindo na mente mofada as idéias do passado em outras idéias, que eu, jovem, não posso compreender.
O que vejo nela, e em todos, é também uma fotografia, a minha fotografia, a que eu montei, pintei, iluminei e a que eu expurgo de mim, de dentro para fora. Se para ela aquelas fotografias vem adquirindo vida, para mim a foto dela vai, vai, vai o que? Vai. Indo.
Talvez seja exagero. E se não for, vira o que? Exercício de aceitação? Aceitação das coisas irremediáveis?
Agora junho eu aniversario, e outra foto entra no calendário quando muda o mês, mas ela não segue a ordem dos meses, segue a ordem da saudade.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Traumas de Infância (II)

Olha a cabeleira do zézé, será que ele é, será que ele é. Todo mundo se fantasia de mulher no carnaval, é pro bloco das piranhas. Uma fantasia de Madona. Tem peitos e é toda dourada. Uma peruca loira. Muito foda. Uma criança de 9 anos se fantasiando. Carnaval. Amigos todos no bloco. Bloco de cidade pequena. O carnaval é sempre casa dos avós. Cidade Pequena. É sempre amigos transitórios. Cidade Pequena. E Daniel gosta de passar as férias lá e brincar na piscina, e chupar picolé, e pique-esconde com os amigos, e andar a cavalo, e subir em arvore, e tomar banho de cachoeira, e. A minha fantasia pro bloco vai ser foda. A mais foda de todas. Arranjei uma roupa igual a da madona, cês vão ver.

Certa vez, um pouco mais novo, havia perdido uma aposta com a sua irmã. Apostou que Carol não conseguiria pular mais longe que ele, conseguiu. As clausulas eram claras, não havia dúvida. Uma peruca de cabelo chanel e desfilar pela rua voltando do colégio. Menina seu cadarço está desamarrado. São gêmeas? E até que era uma menina bem bonitinha. Somos sim. Um sorriso era a constatação da felicidade. Dias depois a peruca na cabeça, pose na frente do espelho, um susto, a mãe o pega em flagrante. Ninguém diz nada. Daniel gostava de se vestir de mulher.

- Menino, que que é isso, se vestindo de mulher?

Ele corria para o banheiro e se trancava. Se perguntassem de novo desconversava, fingia que não aconteceu. Mas agora era carnaval, no carnaval pode, todo mundo faz. Ninguém iria julgar.

- Menino, que que é isso, se vestindo de mulher?
- É pro carnaval, todo mundo se fantasia de mulher no carnaval, vou pro bloco das piranhas, Vó.

A avó chocada. Pede ao garoto que espere. Anda de um lado ao outro da casa, fala com o avô. Anda mais. Volta.

- Vem cá, garoto. Tira essa roupa de mulher. A vovó trouxe uma fantasia legal do batmam pra você.
- Não quero fantasia do batman. Quero minha roupa da Madona!

Insiste. O garoto grita. Chama o avô. Eles brigam. Mandam trocar de roupa. Tiram a força. Daniel chora. O primo entra, sai. A irmã ouve escondido na porta. Colocam a roupa do batmam. Daniel grita e chora. Esperneia. Sente raiva, a roupa do batman é feia, mal feita. A camisa é de regata, horrível. Não vai sair de casa daquele jeito. Liga para a mãe, Soluçando. Chora e geme ao telefone. Magdalena não entende uma palavra. Manda chamar a avó.

- O que foi que houve Mãe?
- Seu filho que quer sair vestido de mulher pela rua.
- É carnaval mãe, deixa de bobagem.
- Não é bobagem, você quer que seu filho vire…
- Ah, mãe, não me vêm com essa não, você me vestia de menino e não deixava meu cabelo crescer quando era criança, e nem por isso eu virei lésbica. Vai a merda. E se ele virar, que seja, não têm problema nenhum.
- Olha só minha filha, quando ele estiver sob minha guarda, eu que decido, e está decidido, neto meu não se veste de mulher.
- É, nem filha.

Daniel não saiu aquela noite, ficou chorando na cama. Tirou a roupa do batmam e tentou rasgar, não conseguiu. Socou o travesseiro. Gritou. Mordeu. Dormiu.

Lá fora tocava uma marchinha de Carnaval e os amigos dançavam e cantavam jogando serpentina. Todo mundo vestido de mulher. Daniel tapou a cara com o travesseiro pra não ouvir.

Depois disso nunca mais quis passar o Carnaval com os avós.