terça-feira, 22 de julho de 2008

A Parede (I)

A parede era roxa, concreta, alta, real, real, real, E me olhava, sem olhos. Me olhava concreto, concretamente.

- Pai?

- Ã?

- O que essa parede está fazendo aqui?

- Não sei. Pergunta pra sua mãe, ela que deve ter mandado botar.

Bati uma, duas vezes na parede. Bati uma terceira. Nada. Aliás, tudo: ela continuava ali, dividindo meu quarto ao meio, exceto por uma abertura retangular de um metro e pouco de altura e não mais do que um de largura. Soberana, me dizendo no seu silêncio sonoro:

- Oi. Eu não vou a lugar algum.

- Marilene!

- Oi menina, que foi, que susto!

- Quê que essa parede está fazendo aqui?

- Ih, menina, não sei. Seu pai não mandou colocar?

- Ele falou que deve ter sido minha mãe.

- Então. Pergunta pra ela. Daqui a pouco ela deve estar chegando.

- Ela foi ao supermercado?

- Ta na sua tia.

Não, mamãe respondeu pelo celular, ela não havia colocado parede alguma no meu quarto. Agora meu espaço estava dividido, e minha primeira dúvida foi: mando derrubar?

Prós: Sujaria tudo. Eu poderia estar destruindo algo importante. A parede poderia ter algo a me dizer. Eu poderia ter algo a dizer pra à parede? Eu poderia alugar a subdivisão do quarto a algum recém-divorciado procurando por uma experiência exótica – ainda que essa última possibilidade pudesse ser a de mais difícil aceitação pelo restante da casa.

Contras: Manter a parede seria o mesmo que manter um bicho de origem desconhecida que surgisse repentinamente em minha casa. A parede não responde às minhas perguntas. Alguém muito magro podia estar vivendo dentro dela.

Eu nunca havia experimentado uma indecisão como aquela. Mais do que vou-não-vou, era um congelamento.

A solução era ignorar a parede e esperar que a resposta viesse. Eram oito e meia da manhã. Eu ia chegar no terceiro tempo, se corresse e saísse de casa despenteada. Era melhor fazer isso mesmo. Não podia ficar em casa a sós com aquela parede. Essas paredes, sorrateiras e quietinhas, têm uma incrível capacidade de impor sua presença e falar, muitas línguas, todas elas.

- Maraá! Maraá!

Estela falava babando; mesmo com os anos de uso, tinha se adaptado mal e porcamente ao seu aparelho fixo. Desde a segunda série do Ensino Fundamental, isso. Por que eu virara sua amiga, exatamente? Acho que todas as outras crianças, mais divertidas e lustrosas, me intimidavam com sua espontaneidade e aparente falta de medo. Arroubos pela sala de aula, explosões nos intervalos. Fui então escolher uma amiga que não me apresentasse ameaça. Que, como eu, tivesse medo. Quem mais, se não a menina babona. Agora evoluída. De rios de saliva, Estela chegara a parcos perdigotos.

Isso, é lógico, é uma racionalização posterior. Satisfez meu psicólogo. Não faço meia idéia do que pensei na segunda série. Vai ver me sentei ao seu lado porque o menino hiperativo, com déficit de atenção e estrabismo resolveu naquele dia sentar-se na carteira que fora minha no ano anterior. Ou vai ver nada.

- Maraá, você conseguiu imprimir nosso trabalho?

Tirei o trabalho da minha pasta e vi o corpo de Estela descontrair-se todo. Ela até que era bonita, a Estela. Falava babando, mais jamais trairia um amigo pelas costas. Era uma daquelas pessoas, sabe. Que são mais por dentro do que por fora.

Aqui o mundo fluía, rotineiro, como no dia anterior e anterior. Na frente da sala, um homem falava, cansado de guerra, os olhos opacos. Lá atrás um rebuliço de vozes cochichava, julgando-se imperceptíveis. À frente, alguns poucos sofredores, o amortemor aos pais e as horas livres de cada dia impelindo-os mais e mais para frente, até quase comprimirem o magro mestre contra a parede com suas carteiras assoladoras.

Lá em casa, uma parede. Pura e simplesmente, roxa, no meio do quarto. Que nada mudava no fluxo dos dias, aparentemente. O sinal tocou, o recreio esvaziou a sala.

- Professor, eu tenho uma dúvida.

- Sim?

- Apareceu uma parede roxa. No meio do meu quarto.

- Uma parede?

- Roxa. No meio do meu quarto. O que você acha disso?

- Mas apareceu como?

- Apareceu do nada, no meio do meu quarto.

- Exatamente no meio?

- Olha, eu não medi. Mas olhando assim, por alto, parece estar dividindo ele ao meio sim.

- E tem porta?

- Tem. Pequena, como se fosse de um anão. Mas dá para passar agachado.

O professor suspirou, coçou o queixo. Limpou os óculos. Mordeu o lábio inferior. Olhou para o nada, olhou para baixo. Olhou para mim.

- Honestamente, Maraá, eu não sei. Me parece bem confuso isso. Mas olha pelo lado positivo: pelo menos ela tem dois lados. Dá para você ter dois quartos. Você pode até tentar ser duas pessoas.

- Eu não acho que dois quartos fazem de mim duas pessoas.

- Mas podem fazer alguma diferença.

- Acho que eu estou satisfeita sendo só uma pessoa.

- Ah é? Que bom. Que bom mesmo. Eu não estou não, sabe. Deve ser porque ensinar um monte de merda prum bando de merdinhas tirou toda a minha energia vital, e eu mal sou uma pessoa só.

Outra parede, que eu não esperava, dividiu meu espaço ao meio. Não sabia de onde a parede tinha vindo, mas já pude notar que ela tinha como conseqüência me manter acordada.

3 comentários:

Chico Motta disse...

Não sei se era para ser assim, mas acho que os prós e contras estão trocados.


achei o conto muito bom.

Eduardo Martins disse...

Não sei, mas lendo o que você escreve sinto uma coisa, não sei, acho que é nostalgia. Por acaso acabei parando aqui. E gostei. Literatura suave, diferente do título.

Cedric Aveline disse...

também gostei muito !
um dos melhores contos seus que já li.

bjus